O Cachorro Que Sabia Falar
Um belo dia, Marcelo visitava Cristóvão em seu sítio em Ibiúna. Em meio a tantas árvores, qualquer rapaz da cidade com pulmão machucado, acostumado com a poluição da capital, sentiria-se desconfortável com tamanho bom ar. Este, no entanto, não era o caso de Marcelo, que adorava o frescor e cheiro da terra que apenas o interior poderia despertar.
— Marcelo, meu nobre! — Disse Cristóvão, cumprimentando o velho amigo no portão.
— Salve, Totó!
O apelido de cachorro não era à toa, visto que boa parte da infância do rapaz envolvera a degustação do que havia de melhor na culinária canina. Certa vez, por exemplo, Marcelo pegou seu cachorro no colo e deu-lhe um biscoito. Invejado, Totó correu atrás como um guepardo insaciável para arrancar o alimento do bicho. Evidentemente, Marcelo ainda não estava ciente do uso de tóxicos de seu amigo.
Cristóvão levou Marcelo para dentro de casa, após uma passarela de pedras e grama bem cortada. O jardineiro fez um bom trabalho, Marcelo pensou.
Chegando ao local, o amigo deu um beijo na esposa, Gabriele, que também cumprimentou o recém-chegado.
— Muito prazer, Marcelo — ela disse.
— O prazer é todo meu.
Gabriele era uma gata no melhor sentido da palavra. Reluzente e sombria ao mesmo tempo. Seus cabelos morenos arrasavam o coração de qualquer rapaz que por ali passava, para o nervosismo de Cristóvão, afinal de contas ele não era um dos homens mais bonitos, sustentando apenas pelo seu visual punk fora de moda.
Entrando na casa, um lugar completamente bagunçado. Parecia que um furacão havia passado por ali.
— As crianças deixaram tudo de ponta cabeça. Não repare, Celo — disse Totó.
Crianças?, Marcelo pensou retoricamente, desde quando o Totó tem filhos?
Não resistindo ao chamado da curiosidade, perguntou:
— Como assim?
— Ah, meus primos mais novos estiveram aqui ontem. Bora tomar café, rapaz. ‘Vamo, ‘vamo!
Tudo caiu como uma ficha. Ah, sim, agora está explicado.
— Vou deixar os meninos se divertirem. Preciso resolver umas coisinhas na cidade — disse Gabriele.
Passaram o resto do dia conversando na cozinha e jogando video games na sala, como nos velhos tempos de escola, porém, agora, quinze anos mais velhos.
— Lembra de quando o Robson ficou de castigo depois que baixou as calças, mostrando o dedo do meio ‘praquele guarda, andando de skate? — Perguntou Marcelo.
— Pode ‘crê! Aquilo foi foda! Rock ‘n roll demais, bro! Ele não tinha quebrado os dentes alguns minutos antes?
— Isso! — Marcelo confirmou, rindo. — Ficou fugindo do guarda depois de ter invadido o clubinho, até que caiu de cara no concreto. Saiu xingando todo mundo com a boca sangrando. Parecia um vampiro. “Seus neandertais do caralho! Peguem na minha banana, gorilada!”
Eles riram muito pelo resto do dia até Gabriele retornar do compromisso. Em seguida, Marcelo foi para a cama. Não por cansaço ou algo assim; queria apenas um tempo só, como todo bom introvertido após muitas horas de interação social — não que fosse bem compreendido, então apenas mentiu dizendo que estava com sono.
Algumas horas de reflexões depois, o rapaz levantou-se a fim de buscar um copo d’água na cozinha. Chegando lá, encheu e bebeu enquanto fuçava seu celular em busca de vídeos curtos para pegar no sono. Então, um barulho vindo de fora da casa. Olhou pela janela da cozinha, que dava vista para o portão e notou um homem observando por entre as frestas do portão.
Correu para o quarto do amigo com intenção de alerta-lo, mas Cristóvão e sua esposa não estavam lá… e esta foi a última coisa que lembrava quando enfim acordara preso a um pedaço de madeira, amarrado por uma corda resistente.
— O que é… — disse, ainda atordoado.
Foi logo que a verdade veio à tona. Rodeando seu corpo preso ao pedaço de madeira, uma seita cantarolava, ainda que erroneamente, A Hard Day’s Night, dos Beatles, cada membro com a máscara de um animal distinto.
— It’s been a hard day’s night (está sendo um dia difícil) — começava um homem de capuz com máscara de gorila.
— And I’ve been talking like a dog (E estou falando como um cão) — continuou outro com a máscara de um cachorro.
Assustado, Marcelo gritou:
— O que está acontecendo aqui?!
— Este é o ritual, meu amigo — disse o com máscara de cachorro.
— Aquele que conduzirá sua alma para a ascenção! — Uma voz feminina, saindo da máscara de gato de um cultista, concluiu.
— Cristóvão? Gabriele?
— Não Cristóvão, nem Gabriele. Totó e Gatiele. E este, como pode ver, é o guarda de nossa infância, Gusrila. Aquele que tentara subjulgar Robson!
— Gusrila?
— Bom, na verdade, Gustavo, só que ele tá com a máscara de um gorila por motivos óbvios, então Gusrila.
Enquanto conversava com os cultistas, Marcelo tentava desatar os nós da corda em que estava preso, sem sucesso.
— Ainda estamos no início de nosso plano — Totó continuou. — Originalmente, o nosso próximo membro seria Robson, porém parece que agora ele é um mordomo de um ricaço aí ou coisa do tipo.
Ele, então, volta ao assunto.
— Sempre tentamos incluir os caretas nas festas, Celo. Por meio de drogas, bebidas ou qualquer coisa relacionada. Mas careta é careta, e nunca descaretará se não for convertido — disse fazendo um sinal para Gatiele. — E é por isso que estamos aqui. O Gusrila foi convertido, e agora é a sua vez. — A mulher então o entrega uma pílula; um alucinógeno.
— Eu não sabia o que fazia com minha vida antes disso! — Exclamou o homem com a máscara de gorila, batendo no peito como o animal.
— Quando conheci Gatiele, entendi meu objetivo. Ela era que nem eu, curtidora, maneira, gostosa!
Totó caminhava para perto de Marcelo, que debatia-se em desespero.
— Miauuu! — A mulher respondeu.
— Só uma pilulazinha e puf! ‘Cabou o careteiro! E você nunca mais vai fugir de uma festinha pra “dormir”! E, claro, você será um morcego, como Robson teria sido se não evitasse os amigos. — Concluiu, forçando Marcelo a engolir a droga.
Então, um guincho de Marcelo, seguido pelos cultistas engolindo suas pílulas individuais. O trenzinho da alegria festeira havia começado.
— Felinos e caninos! Vos apresento, Marcego!
— Nieeeeeeeeeeeeeeeeeeé! Eu sou a noite! — Berrou o novo Homem-Morcego.