Homem-Aranha (2002) de novo…
O texto, de alguma forma, inclui spoilers do livro de ‘O Poderoso Chefão’. Leia por conta.
Quem me conhece há mais tempo bem sabe que meu primeiro texto publicado neste site foi uma análise do primeiro filme do Homem-Aranha dirigido por Sam Raimi, quando eu ainda tinha meus 16 anos de idade. Bom, três anos depois, com quase 20 anos nas costas, retorno a este longa-metragem mais do que especial para mim. Os tempos mudam, aprendemos mais, conhecemos mais e acabamos por ganhar bagagem; portanto, pensei, por que não refazer aquele belíssimo texto (do qual ainda tenho orgulho) de uma maneira mais experiente?
Desta vez volto com um novo assunto a ser abordado: quadrinhos. Quem não ama quadrinhos? Bom, muitas pessoas, para falar a verdade, porém eu adoro; principalmente os do Homem-Aranha no ínicio da década de 1960, com as aventuras criadas por Stan Lee e Steve Ditko. Uma época simples, campy (exagerada), e jovial. A verdade é que essas grandes estórias cheias de aventura, ação, drama e comédia eram e, normalmente, ainda são para o público infantojuvenil. Claro que podemos pegar quadrinhos renomados como ‘Watchmen’ e abrir o debate sobre quadrinhos “adultos”, mas não é algo que eu gostaria de conversar sobre neste texto.
Os diálogos dos quadrinhos desta época eram clichês, idiossincráticos e exageradamente expositivos. Ainda assim, uma simples picada de aranha no nerd aleatório e ignorado do Colégio Midtown mudou o curso das estórias de super-herói para sempre — e, igualmente, da minha vida. Os personagens falavam engraçado, referiam a si mesmos em terceira pessoa, discutiam sozinhos em voz alta. De fato, na realidade era extremamente raro haver um quadro desenhado que não existisse um balão de fala lotado de texto em meio a uma situação galhofa. Uma ilustração hipotética poderia ser:
Doutor Destino está planejando destruir o Quarteto Fantástico (de novo), prendendo-os em uma jaula com cinco tigres treinados por um dragão espacial especializado em karatê, porém o incrível Homem-Aranha aparece para resgata-los. O diálogo entre os personagens ocorreria mais ou menos assim:
Homem-Aranha: Doutor Destino! Então era você o tempo todo! Você sequestrou o Quarteto Fantástico e destruiu a única chave que poderia liberta-los!
Doutor Destino: Homem-Aranha! Vejo que descobriu meus planos! Temo que terei de da-lo o mesmo destino dos seus amigos fantasiados!Homem-Aranha: É isso, o que veremos, cabeça de lata! Com minha incrível agilidade posso desviar de todas as suas armadilhas mortais!
Doutor Destino: (pensando) Bah! Se eu puder acertar o inseto com meu Laser Megalodom 3000 Latveriano Letal, ele não será mais um problema!
Em suma, tudo era extremamente caricato e sem nuance; aspectos que, obviamente, foram desenvolvidos com o passar dos anos e das inúmeras edições publicadas. E isto não valia apenas para o Homem-Aranha, mas os super-heróis em geral.
Todo este “blá blá blá” foi importante para contextuatilizar o que busco tratar neste texto: Sam Raimi é galhofa.
‘Uma Noite Alucinante 2' (Evil Dead 2) é uma comédia de horror lançada em 1987, sendo uma auto-paródia do filme anterior, ‘A Morte do Demônio’ (The Evil Dead, 1981). Neste longa, seu protagonista, Ash Williams, continua sua saga para sobreviver aos terríveis deadites — em termos simples, pessoas possuídas por demônios. A questão, no entanto, é: o filme não se leva a sério.
‘Evil Dead 2’ difere-se de ‘The Evil Dead’ em seu humor, algo amplificado ainda mais a partir de sua sequência ‘Army of Darkness’, e então na série ‘Ash vs. Evil Dead’ e, claro, em seus inúmeros spin-offs em quadrinhos e jogos eletrônicos. Foi nele que seu herói nada ortodóxico foi de vez estabelecido como um estereótipo de protagonistas de filmes de ação genéricos e “machões”; uma caricatura do arquétipo.
Há inúmeros aspectos presentes nestes filmes que demonstram os valores de seu diretor, principalmente com sua abordagem diferenciada em seu Peter Parker no filme de 2002. Deixo aqui a recomendação de um vídeo do canal ‘Tralhas do Jon’ para os interessados. Partindo do pressuposto que você, caro leitor, já tenha uma ideia da minha abordagem para este texto — principalmente caso já tenha visto o vídeo citado — , partirei diretamente para a primeira parte da argumentação.
PARTE 1: O desenvolvimento de Peter Parker
No momento que entendemos a abordagem anacrônica do Peter Parker de Sam Raimi, podemos observar como o encontro com a aranha geneticamente modificada acaba por mudar completamente sua caracterização após sua briga com Flash Thompson e a descoberta de seus novos superpoderes.
Diferente dos quadrinhos, Peter não é o indivíduo de baixa autoestima que, por conta de seus valentões, desenvolve uma revolta quanto membro de sua sociedade — algo adaptado de forma sublime na run de ‘Ultimate Spider-Man’ (2000) de Brian Michael Bendis. Aqui Peter é mais atrapalhado, bobo e infantil; não no sentido pejorativo, mas em sua aparente inocência.
São características bem distantes do adolescente inegavelmente sarcástico e estressadinho originalmente concebido, porém igualmente válidas. Ambos os arquétipos eram distantes da nossa concepção de super-heróis em suas respectivas épocas, sendo, ainda, jovens que seriam vistos por adultos como imaturos ou medrosos — aspectos importantíssimos correlacionados com o balanço entre a vida pessoal e heróica do personagem.
Isto é bem claro quando tratamos da evolução desta adaptação do escalador de paredes, pois Peter começa, como já dito anteriormente, como um jovem inocente e amadurece após a descoberta de seus poderes e o confronto no ringue, além de, obviamente, a morte de seu tio Ben. Em cerca de uma hora decorrida da trama, ele já é um herói completo, mais preparado e ciente dos perigos da própria vida; algo intensificado depois do confronto final com o Duende Verde, o que dá a Peter a motivação para rejeitar seu maior amor, Mary Jane Watson — que, durante a narração inicial, afirmava que faria qualquer coisa para ficar com ela. Um desenvolvimento completo e sublime em questão de pouco menos de duas horas de longa.
PARTE 2: Adaptação dos quadrinhos
Eu poderia fazer o caminho mais fácil e pegar trechos fora do contexto em quadrinhos da década de 1960 e compara-los com a caracterização de personagens no filme em cenas igualmente fora de seus contextos, porém não é o tipo de coisa respeitável a se fazer quando gostaríamos de criar um debate saudável no lugar de uma pseudo-discussão sobre “comic accurate”. Uma boa adaptação não necessariamente precisa ser uma transcrição exata da estória original, então quaisquer momentos fora do contexto que forem colocados aqui tratarão-se apenas das representações visuais ou certas adaptações dos diálogos clássicos.
Para facilitar o entendimento, pego de exemplo o fato do epílogo de ‘O Poderoso Chefão’, de Mario Puzo (e muitos outros capítulos), ter sido cortado em sua adaptação cinematográfica, que opta por finalizar sua narrativa com a icônica cena de Kay olhando para a porta aberta do escritório de Michael Corleone e percebendo que o bom homem que uma vez conhecera não estava mais lá.
Evidentemente, o longa de 1972, de Francis Ford Coppola, continua sendo uma adaptação quase 1 para 1 do livro de Mario Puzo, porém isto em nenhum momento isentou a obra de ser alterada para melhor encaixar na linguagem cinematográfica. Mas como o livro acaba?
Kay Adams, agora Kay Corleone, fora apresentada intimamente durante a estória, entretanto, o aspecto religioso é o mais importante neste epílogo. Ela seguia a doutrina Batista, diferente da família Corleone, que seguia o Catolicismo. A garota sabia que a mãe de Michael tinha o costume de ir à igreja para rezar para que seu ex-marido, Vito Corleone, fosse poupado da danação eterna no inferno.
Após o casamento da jovem com Michael, a garota converte-se para a crença católica e passa acompanhar sua sogra em suas idas na igreja. Então, o livro termina da seguinta forma:
[…] Esvaziou a mente de todos os pensamentos sobre si, sobre os filhos, de toda a raiva, de toda a revolta, de todas as perguntas. Então, com um sincero e profundo desejo de crer, de ser ouvida, como fazia todos os dias desde o assassinato de Carlo Rizzi, ela rezou as necessárias preces pela alma de Michael Corleone.
Um parágrafo impactante para o término de uma odisseia de crime e violência. Cinco linhas resumem a trajetória de seu protagonista e sua queda e desenvolvimento. O final necessário para a narrativa literária. Um final cortado no longa-metragem para evitar a redundância e a perda do impacto único do audiovisual. Dois finais com o mesmo significado, mas individuais para cada mídia.
Agora, retornando ao Homem-Aranha, vamos a estes quadros da revista ‘Amazing Fantasy’ #15, de 1962.
Podemos ver três elementos importantes: a picada da aranha irradiada, a descoberta dos poderes e, ainda, um painel final com outra aranha ema teia. Representações simples, extremamente expositivas (os monólogos), mas ótimas para o impacto necessário de um conto de ficção científica de histórias em quadrinhos da década de 1960. Como o filme de Sam Raimi adaptou estes elementos visuais já bem firmados aos olhos do público? Sem diálogos ou monólogos desnecessários.
A trilha-sonora, os movimentos de câmera e a exposição respeitando a inteligência do espectador traduzem um quadrinho de 1962 para as telas do cinema com o mesmo impacto impressionante que os leitores vivenciaram na época, porém nos anos 2000; com mais espaçamento e tempo necessário para uma obra cinematográfica ser desenvolvida, diferente e, ao mesmo tempo, igual a um quadrinho de 11 páginas.
Não há a necessidade de um veículo em alta velocidade quase atropelando um enjoado Peter Parker após uma picada venenosa, apenas um momento contemplativo e dramático, visualmente estupendo e arrepiante, sem monólogos. Uma HQ em movimento.
Enquanto a estória original é datada e simplificada, o longa-metragem desenvolve a trajetória de Peter Parker com muito mais calma e nuance. Mas como poderiam então deixar o fantasioso exagero das aventuras originais do Homem-Aranha? Simples: com um melodrama romântico noventista.
PARTE FINAL : O brega e o melodrama
Recentemente criou-se quase um consenso na comunidade de fãs de quadrinhos de que os filmes de Sam Raimi teriam estragado a percepção do público geral para com relação aos personagens nas telonas, o que não é verdade. A caracterização clássica foi só levemente alterada para melhor encaixar o viés melodramático desejado para um filme dos anos 2000: um melodrama brega e com coração, tal como as estórias de Stan Lee e Steve Ditko eram bizarras e exageradas. Então o que acontece quando o exagero junta-se ao melodrama e, por fim, a direção e o roteiro acrescentam uma pitada de seriedade necessária para manter o personagem relevante? A imagem a seguir simplifica bem.
Este fato entra diretamente de acordo com a razão de Sam Raimi ter sido a melhor escolha para esta trilogia; seu exagero e criticismo ao estereótipo de protagonistas másculos, existentes desde os filmes de ‘Evil Dead’, permitem que ele apresente um super-herói improvável originado de um conto antológico de ficção científica e horror de maneira crível para o público com toda a sua identificação e misticismo para as telaas de cinema
Raimi, com sua direção característica, transforma suas cenas em páginas de quadrinhos dinâmicas que importam elementos clássicos da mitologia do escalador de paredes, transitando da origem para a criação do uniforme do Homem-Aranha, seu surgimento como um verdadeiro super-herói, seu início de carreira como fotógrafo para o Clarim Diário, as frases bregas e marcantes de supervilões nas lutas, entre outros; tudo isso começando como um típico filme melodramático para acostumar o público aos poucos com o verdadeiro objetivo do projeto: um longa-metragem do Homem-Aranha. Uma obra fiel aos quadrinhos, mas com identidade própria.